
O retorno da rapadura de caldo de cana. Por Geraldo Eugênio
Um alimento de vaqueiros, tropeiros e retirantes
Postado em 07/10/2021 2021 18:45 , Agronegócios. Atualizado em 07/10/2021 18:48
Geraldo Eugênio Foto: Divulgação
A história da cana-de-açúcar no Brasil se confunde com a aristocracia canavieira e com famílias que coexistem com o setor até os dias de hoje. Sempre me encantei em acompanhar a vida econômica, social e cultural do estado de Pernambuco nos séculos XV e XVI, quando o açúcar era o principal produto de exportação do Brasil e fonte da cobiça estrangeira.
Vide as incursões de franceses e holandeses, os últimos deixando marcas fortes na cultura pernambucana.
Imagem Divulgação
Dieta dos Vaqueiros e tropeiros
Originalmente, a rapadura fazia parte da dieta dos vaqueiros e tropeiros, complementando as porções de farinha de mandioca e a carne de sol ou charque. Os vaqueiros que viviam praticamente dentro da caatinga também a tinha em sua alimentação diária, afinal, era a energia que tanto necessitavam para enfrentar as durezas dos verões e a pega dos bois na mata espinhosa. Para completar, não são poucos os relatos que falam deste doce duro nas sacolas dos miseráveis retirantes que com seus últimos centavos de réis, tentavam contar com a farinha e a rapadura até que voltassem a encontrar o cuscuz, a fava ou o feijão de corda.
Também o açúcar e a sobremesa sertaneja
Com o fim do transporte de cargas pelas tropas, a troca do burro pela moto e a quase erradicação do retirante, ou mesmo do migrante fugindo desesperadamente da morte, a rapadura insistiu em estar presente na mesa sertaneja como sobremesa dos mais humildes e nas casas mais abastadas tendo o queijo como complemento. O fato é que o nosso doce, um produto marcadamente sertanejo, teve seu apelo e seu consumo diminuídos nas últimas duas décadas, em especial entre os jovens, resultando em uma retração da área de cana-de-açúcar plantada em Santa Cruz da Baixa Verde, Triunfo e arredores.
Um passo à frente e outro atrás
O mais grave não estava aí, mas a uma ampla adoção de práticas de produção indesejáveis à exemplo da fabricação da rapadura a partir do açúcar, o que resulta em um produto distinto em termos de sabor do que é o produto original produzido a partir do cozimento do caldo de cana. Se houver continuidade com este tipo de modelo de negócio, não haverá produto que resista. O turista está disposto a pagar o preço justo por um doce, queijo, mel, licor ou bolo que represente, a cultura regional, mas não ficará satisfeito em levar como lembrança uma rapadura na palha, sendo vendida como batida e ao chegar em casa verificar que aquelas 250 gramas de açúcar petrificado custaram um valor superior a um quilograma de açúcar refinado e não têm sabor, textura ou sequer aparência da rapadura que ele foi acostumado a saborear em outros tempos. Este tipo de truque compromete qualquer produto, sejam os lácteos, a castanha, o mel ou a rapadura. Com certeza existe a fiscalização da vigilância sanitária para os produtos locais, mas o melhor fiscal é o produtor, suas associações e cooperativas. Lá no distrito, todos sabem quem é quem. A acomodação por parte da gestão local e daqueles que estão no negócio tem sido a principal causa do declínio da qualidade e da consequente redução do consumo de muitos produtos. Ao que parece, a rapadura de cana-de-açúcar do Sertão de Pernambuco é um bom exemplo do que foi relatado.
A rapadura tem futuro, sim senhor
Sendo a rapadura um produto tradicional, característico de uma região rica em cultura e tradição e tendo o apelo de ser um produto local fabricado em empresas de base familiar, basta manter seu papel na culinária local e demonstrar quão saborosa é a rapadura pura ou com adição de frutas, destacando-se o coco ralado, o maracujá, o amendoim, a abóbora, o mamão ou a cidra, como se fabrica no Sudeste. O ideal será ver a rapadura sempre presente no cardápio e no agronegócio sertanejo. Mas quem terá a palavra final nessa história não será a instituição de fomento, de extensão, ou de crédito, mas a boa fé e a consciência para realização de um trabalho bem-feito visando a entrega de um produto de qualidade. Lembrando, que o consumidor tem sempre razão. Não o levar em consideração é um erro fatal. Um produto de qualidade duvidosa só é adquirido uma vez, além da repercussão negativa. O que não é de interesse de nenhum elo da cadeia.
Quem é Geraldo Eugênio: Engenheiro Agrônomo, com mestrado na Índia e doutorado e pós-doutorado nos na Texas A&M University, Estados Unidos, é ex-pesquisador do IPA e Professor Titular em Agricultura e Biodiversidade na UFRPE – UAST, Serra Talhada, PE. Foi Secretário de agricultura de Pernambuco, Presidente do IPA, do ITEP e Diretor Executivo da Embrapa. Nos últimos anos tem acompanhado de forma direta políticas, tecnologias e iniciativas inovadoras aplicadas à gestão de secas, no Brasil e no exterior. Considera essencial entender melhor o Sertão, visualizando-o como um grande ambiente de negócios e sucesso.