Trauma e transformação: a psicanálise de Klein e Bion na compreensão da violência sexual.
A teoria psicanalítica de Klein e Bion oferece uma estrutura para entender a complexidade do trauma da violência sexual e o caminho para a recuperação.
Postado em 21/05/2024 2024 17:58 , Coluna Psicanálise no Cotidiano. Atualizado em 21/05/2024 14:43
A violência sexual é um evento traumático que pode causar profundas rupturas na estrutura psíquica do indivíduo, desencadeando uma série de reações internas complexas e muitas vezes debilitantes. Através das lentes da psicanálise de Melanie Klein e Wilfred Bion, podemos explorar as dinâmicas internas que surgem em resposta a tais traumas e o processo de recuperação que se segue, oferecendo uma visão mais profunda das forças psíquicas em jogo e das possibilidades de cura e transformação.
Segundo Melanie Klein, a posição esquizoparanoide é uma fase do desenvolvimento infantil caracterizada pela divisão do objeto em ‘bom’ e ‘mau’. Vítimas de violência sexual podem regredir a essa posição, onde o mundo é dividido entre segurança e perigo, refletindo a ansiedade e o medo experimentados. A violência sexual pode fazer com que a vítima sinta-se presa nessa posição, lutando para integrar a experiência traumática e mover-se para a posição depressiva, onde a ambivalência e a reparação são possíveis. Este movimento é crucial para a saúde psíquica, pois permite a reintegração do self e a reconciliação com as partes anteriormente divididas.
Klein introduziu o conceito de identificação projetiva, que Bion expandiu, sugerindo que ela pode ser usada defensivamente para lidar com pensamentos e sentimentos intoleráveis. Vítimas de violência sexual podem projetar partes de si mesmas que foram contaminadas pelo trauma em outros, como uma forma de se protegerem da dor completa da experiência. Esta projeção pode ser um mecanismo de defesa necessário inicialmente, mas eventualmente deve ser trabalhada na terapia para que a vítima possa reintegrar essas partes de volta ao self.
Bion desenvolveu o conceito de função alfa, o processo pelo qual as experiências brutas e os elementos beta são transformados em pensamentos alfa, que podem ser pensados e simbolizados. Para vítimas de violência sexual, a capacidade de realizar essa transformação pode ser prejudicada, deixando-as sobrecarregadas por emoções e memórias não processadas. A terapia pode facilitar a função alfa, ajudando a vítima a digerir e transformar o trauma em algo que possa ser mentalizado e integrado.
Bion também falou sobre a relação continente-contido, onde um indivíduo (o continente) ajuda outro a processar e compreender suas experiências emocionais (o contido). Para uma vítima de violência sexual, encontrar um contêiner, como um terapeuta ou um ente querido, é essencial para ajudar a processar o trauma e promover a cura. Este relacionamento terapêutico oferece um espaço seguro onde as emoções traumáticas podem ser contidas e trabalhadas.
Klein acreditava que a inveja e a gratidão são emoções fundamentais que influenciam nossas relações com os outros. No contexto da violência sexual, a inveja pode surgir como uma resposta ao que foi tirado da vítima, enquanto a gratidão pode ser sentida em relação àqueles que oferecem apoio e compreensão durante a recuperação. A gratidão pode ser um poderoso antídoto para a inveja, ajudando a vítima a se reconectar com os outros e a valorizar o apoio recebido.
Bion enfatizou a importância do desenvolvimento do pensamento para a saúde mental. Para vítimas de violência sexual, o desenvolvimento de uma capacidade de simbolizar o trauma é crucial. Através da simbolização, elas podem começar a entender e integrar o trauma em sua narrativa de vida, o que é um passo vital na recuperação. A capacidade de simbolizar permite que a vítima se distancie do evento traumático e o veja como parte de uma história maior, facilitando a cura.
A teoria psicanalítica de Klein e Bion oferece uma estrutura para entender a complexidade do trauma da violência sexual e o caminho para a recuperação. Ao reconhecer a importância da posição esquizoparanoide, da identificação projetiva, da função alfa, do continente-contido, da inveja e da gratidão, e do desenvolvimento do pensamento, podemos começar a apreciar a jornada de cura que as vítimas de violência sexual empreendem. É uma jornada que requer tempo, paciência e um ambiente terapêutico que possa conter e transformar o trauma em algo que possa ser compreendido e integrado na história de vida do indivíduo, permitindo-lhes finalmente encontrar um sentido de paz e propósito após o trauma.
Daniel Lima, teólogo, filósofo e psicanalista.
Psicanalista membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi – GBPSF.
Pós-graduado em ciências humanas: sociologia, história e filosofia.
Pós-graduado em psicanálise e teoria analítica.
www.psicanalisedaniellima.blogspot.com
daniellimagoncalves.pe@gmail.com
@daniellima.pe