Seja cosmopolita como um Guarani
Artigo do jornalista César Rocha o petrolinense que fez do mundo seu Sertão
Postado em 22/12/2020 2020 14:20 , Economia, Últimas Notícias. Atualizado em 22/12/2020 18:55
Venho de um lugar com céu grande e talvez seja esta uma das razões para me sentir tão bem em Brasília, Lisboa e Lausanne, onde morei. Talvez também venha daí o hábito de deixar os estories das janelas sempre abertos, mesmo no inverno. Aliás, minha conexão com o céu me fez, após duas semanas sem um único dia de sol em Dublin, correr para pegar o trem para uma praia, onde o horizonte, mesmo nublado, me permite respirar.
Mas voltemos. Após falarmos bastante de Petrolina e do Vale, o holandês me perguntou: “Por que vai estudar inglês numa cidade onde se fala com sotaque carregado?”. Achei engraçada a pergunta: “Oxe, mas eu já falo com sotaque, hahaha”. É tudo questão de perspectiva. Sotaque em relação a quem? Qual é o português ou inglês “certo”, sem sotaque? Os europeus são mesmo figuras muito exóticas.
Estrogonofe, eu? – A resposta ao gringo traduz para mim o que é ser provinciano ou cosmopolita. Não vou deixar para trás minhas referências e nem “gostar” apenas do que é estrangeiro. Adoro estrogonofe, mas me decepciono toda vez que vou ao sertão comer um bode assado ou guisado e o anfitrião tenta ser chique com o prato russo. Tem um restaurante perto de casa, em Lisboa, que serve um rim delicioso, parecido com o rim de carneiro do bodódromo, em Petrolina.
A gente carrega nossa identidade cultural no coração e nos sentidos. O vento frio no rosto quando caminho, aqui ou em Paris, me faz lembrar a sensação de liberdade dos passeios pela orla da minha cidade nas festas de São João. São ativações dentro de você, dos seus gostos, desgostos, amores, decepções, do que é belo ou feio, um cardápio enorme que se formou lá atrás – no meu caso, ouvindo rádio com o meu pai, ajudando minha mãe na cozinha, vendo a paisagem do sertão, mergulhando no rio e muito mais. Mas devemos evitar as comparações porque têm mais a ver com negócios e vendas do que com a vida das pessoas.
Sigo sertanejo, apaixonado pelo Rio São Francisco, meu playground na infância, gosto de farinha, de carne seca, do calor, do sol e de pequi, sem culpas ou complexos, nem ufanismos e apegos conservadores às tradições. Dia desses, ao orientar a comunicação de uma liderança política, disse a ele: quem te garante que os jovens do São Francisco querem produzir fruta? Muitos podem até querer, mas inúmeros querem mesmo é produzir games, fazer coisas modernas. Tem que entender isso. Uma coisa não anula outra. Por que os franceses iriam deixar de glamourizar as “comidas de camponeses”, “rústicas” e “provincianas” como o cassoulet, um cozido de feijão e carnes? Nem pensar.
Cosmopolita é a Amazônia – Sou brasileiro, não sei sambar nem conheço a Amazônia, mas condeno quem diz sermos provincianos e monoglotas. O Brasil tem uma desigualdade absurda – econômica, de gênero, de raça e regional. Falta governo sério para resolver. Mas há 11 milhões de pessoas, sobretudo da classe média, falando inglês (a população de Portugal). Contudo, muito mais importante do que isso: somos uma nação com cerca de 250 línguas e povos diferentes, como os guaranis, com sua incrível visão holística do mundo. Dar protagonismo a esses povos (eles são a essência do local ou “provinciano”) e tornar a Amazônia um eixo central da nossa estratégia de desenvolvimento, isto, sim, é ser moderno e cosmopolita. É no que penso quando tomo um café em Lisboa e lembro do café da minha mãe e das conversas sobre política com meu pai, na Rua Félix Pinto, centro de Petrolina.
JS Economia