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Pernambuco, 23 de março de 2024

Economia

Seja cosmopolita como um Guarani

Artigo do jornalista César Rocha o petrolinense que fez do mundo seu Sertão

Postado em 22/12/2020 2020 14:20 , Economia, Últimas Notícias. Atualizado em 22/12/2020 18:55

Cesar Rocha é Jornalista, sócio das agências de marketing WCOM Portugal e da Caisnovo Comunicação, no Brasil. cesar@wcomportugal.com

Certa vez decidi passar férias na Irlanda, em Dublin, para estudar inglês. No caminho, calhou de sentar ao meu lado um holandês que, além da simpatia, vejam só, era importador de frutas do Vale do São Francisco e de Petrolina, onde nasci, fonte de grande parte das referências que me definem como pessoa, em todos os sentidos, do tato ao paladar e à visão. Para se ter uma ideia do que isso significa, cito sempre minha relação com o horizonte.

Venho de um lugar com céu grande e talvez seja esta uma das razões para me sentir tão bem em Brasília, Lisboa e Lausanne, onde morei. Talvez também venha daí o hábito de deixar os estories das janelas sempre abertos, mesmo no inverno. Aliás, minha conexão com o céu me fez, após duas semanas sem um único dia de sol em Dublin, correr para pegar o trem para uma praia, onde o horizonte, mesmo nublado, me permite respirar.

Mas voltemos. Após falarmos bastante de Petrolina e do Vale, o holandês me perguntou: “Por que vai estudar inglês numa cidade onde se fala com sotaque carregado?”. Achei engraçada a pergunta: “Oxe, mas eu já falo com sotaque, hahaha”. É tudo questão de perspectiva. Sotaque em relação a quem? Qual é o português ou inglês “certo”, sem sotaque? Os europeus são mesmo figuras muito exóticas.

Estrogonofe, eu? – A resposta ao gringo traduz para mim o que é ser provinciano ou cosmopolita. Não vou deixar para trás minhas referências e nem “gostar” apenas do que é estrangeiro. Adoro estrogonofe, mas me decepciono toda vez que vou ao sertão comer um bode assado ou guisado e o anfitrião tenta ser chique com o prato russo. Tem um restaurante perto de casa, em Lisboa, que serve um rim delicioso, parecido com o rim de carneiro do bodódromo, em Petrolina.

A gente carrega nossa identidade cultural no coração e nos sentidos. O vento frio no rosto quando caminho, aqui ou em Paris, me faz lembrar a sensação de liberdade dos passeios pela orla da minha cidade nas festas de São João. São ativações dentro de você, dos seus gostos, desgostos, amores, decepções, do que é belo ou feio, um cardápio enorme que se formou lá atrás – no meu caso, ouvindo rádio com o meu pai, ajudando minha mãe na cozinha, vendo a paisagem do sertão, mergulhando no rio e muito mais. Mas devemos evitar as comparações porque têm mais a ver com negócios e vendas do que com a vida das pessoas.

Sigo sertanejo, apaixonado pelo Rio São Francisco, meu playground na infância, gosto de farinha, de carne seca, do calor, do sol e de pequi, sem culpas ou complexos, nem ufanismos e apegos conservadores às tradições. Dia desses, ao orientar a comunicação de uma liderança política, disse a ele: quem te garante que os jovens do São Francisco querem produzir fruta? Muitos podem até querer, mas inúmeros querem mesmo é produzir games, fazer coisas modernas. Tem que entender isso. Uma coisa não anula outra. Por que os franceses iriam deixar de glamourizar as “comidas de camponeses”, “rústicas” e “provincianas” como o cassoulet, um cozido de feijão e carnes? Nem pensar.

Cosmopolita é a Amazônia – Sou brasileiro, não sei sambar nem conheço a Amazônia, mas condeno quem diz sermos provincianos e monoglotas. O Brasil tem uma desigualdade absurda – econômica, de gênero, de raça e regional. Falta governo sério para resolver. Mas há 11 milhões de pessoas, sobretudo da classe média, falando inglês (a população de Portugal). Contudo, muito mais importante do que isso: somos uma nação com cerca de 250 línguas e povos diferentes, como os guaranis, com sua incrível visão holística do mundo. Dar protagonismo a esses povos (eles são a essência do local ou “provinciano”) e tornar a Amazônia um eixo central da nossa estratégia de desenvolvimento, isto, sim, é ser moderno e cosmopolita. É no que penso quando tomo um café em Lisboa e lembro do café da minha mãe e das conversas sobre política com meu pai, na Rua Félix Pinto, centro de Petrolina.

JS Economia