Leitão da Carapuça celebra o reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo
A conquista da certificação por meio da Fundação Cultural Palmares ocorreu há 17 anos, em 2005. Saiba mais sobre a história do processo de autoidentificação dos moradores como quilombolas.
Postado em 07/08/2022 2022 10:26 , Cidades. Atualizado em 07/08/2022 12:22
Histórias de um povo que resiste
No passado do Brasil, os quilombos eram comunidades formadas, em grande parte, por negros e negras que fugiam da exploração, maus tratos e trabalho escravo. Após séculos, os remanescentes buscam preservar a memória do seu povo, especialmente histórias e tradições culturais, na medida em que acompanham as transformações sociais e tecnológicas. Atualmente, as comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) são reconhecidas e certificadas, o que fortalece os direitos e as garantias para a sua população.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, estabelece que “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.” De acordo com o inciso § 5º, “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.” Nacionalmente, a entidade responsável pelo processo de reconhecimento das CRQs é a Fundação Cultural Palmares (FCP), criada por meio da Lei nº 7.668, que tem como missão a promoção e a preservação da cultura negra e afro-brasileira.
No art. 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.”
Dados mais recentes da FCP indicam que 3.495 CRQs foram identificadas até o fim de junho de 2022 (ver gráfico abaixo). Em sua maioria, no Nordeste, com 2.208, seguido pelo Sudeste (569), Norte (369), Sul (193) e Centro-Oeste (169).
Já a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) avalia que há 5.972 quilombos espalhados por 24 estados. A entidade confirma que o certificado é a primeira etapa para regularização, que oportuniza o processo de titulação de território quilombola no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Entretanto, apenas 2.840 já conquistaram a certificação da FCP (ver tabela). Clique aqui e conheça todas as comunidades já certificadas pela FCP.
Com a certidão, segundo a CONAQ, a comunidade passa a ter direitos e amparos legais “[…] assegurados pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que se referem à defesa e à valorização do patrimônio cultural brasileiro e afro-brasileiro e à obrigação do poder público em promover e proteger estes patrimônios culturais.”
Ainda de acordo com a CONAQ, a partir da certificação, os moradores das comunidades passam a ter mais direitos, por exemplo, a benefícios sociais, como “[…] participação nos programas federais Minha Casa, Minha Vida Rural, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, CRAS Quilombola, redução da tarifa de consumo de energia elétrica em até 65%, podendo chegar até 100%.”
É necessário destacar que a identificação de uma pessoa como quilombola é autodeclaratória, conforme indica a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho. No Leitão da Carapuça, Seu Antônio José da Silva recorda que antigamente muitos não se reconheciam como quilombolas no Leitão. “Quando a gente chegou aqui não ouvia nem falar. Os mais velhos já diziam que tinha uns quilombolas pro lado do Agreste.” Mas ele explica que o seu pai e o seu avô falavam bastante na história de Zumbi dos Palmares, reconhecido líder quilombola brasileiro no período da escravidão. “Falava muito nele, mas nós nunca pensamos na vida da gente ter o nome de quilombola.”
O líder da comunidade, Sebastião José da Silva, explica que, no passado, familiares fugiram para a região devido à exploração de mão de obra não remunerada, análoga à escravidão. “Meus familiares são remanescentes de pessoas que trabalhavam nas fazendas sem ganhar, sem ser remunerado. Em Custódia, muitos deles trabalhavam de graça para os coronéis”, diz.
Sua filha, Rosângela Maria da Silva, 20 anos, conta para o JS que se orgulha da história da comunidade e do seu povo. “Sinto muito orgulho em ser quilombola e em saber da luta que os meus antepassados tiveram.”
A pesquisadora Simone do Nascimento Barros realizou um estudo no local em 2016, com o objetivo de compreender a construção da identidade Quilombola no Leitão, e faz um alerta. “Se a memória não for sendo passada, ou melhor falando, guardada de geração em geração, muito pode se perder da sua identidade, até porque os registros sobre a localidade são poucos.” Clique e leia a pesquisa na íntegra.
Por isso, o líder comunitário busca compartilhar o conhecimento oral adquirido por meio das conversas com os habitantes mais velhos do Leitão e destaca a importância de conhecer suas origens. “Eu sempre gosto de resgatar as histórias para ter conhecimento e repassar para as famílias.”
Os moradores lembram de um momento especial no final de 2003, que contribuiu com o processo de reconhecimento legal. A visita do então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, e de sua comitiva atraiu visitantes, pesquisadores e mídia. Na ocasião, durante o lançamento do projeto nacional Arca das Letras, que buscava incentivar a leitura em comunidades rurais, a tradicional Banda de Pífanos e o Grupo de Coco Negros e Negras do Leitão se apresentaram com a pifeira Zabé da Loca.
Segundo os depoimentos, dali em diante a visibilidade aumentou e a Associação de Moradores passou a contar com apoio para auxiliar no processo de reconhecimento junto à FCP. “Desse tempo por diante começou o pessoal frequentando aqui, muita reunião; quando foi depois juntaram com o samba de coco e Banda de Pífanos. Veio o pessoal de Brasília e ajudou”, lembra seu Antônio.
Em 2005, o Leitão da Carapuça foi certificado como remanescente de quilombo pela FCP. “Aqui no município de Afogados somos a única comunidade reconhecida pela Fundação Palmares, apesar de que existem outras no município de Carnaíba e Iguaracy também”, afirma Sebastião.
17 anos depois, a jovem Rosângela relata que é uma grande conquista ter o território reconhecido. Com o objetivo de contribuir com a comunidade, ela está engajada nas lutas do seu povo e faz parte da Comissão Estadual Quilombola. “A gente ainda não venceu a luta, só venceu algumas batalhas, mas estamos lutando.” Uma dessas batalhas é a propriedade definitiva, pois o art. 268 da Constituição Federal garante que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos.”
Desde 2019, Pernambuco conta com o Programa Propriedade Legal, que planeja beneficiar mais de 270 mil pessoas das áreas urbana e rural, em cerca de 100 municípios, das 12 regiões de desenvolvimento no estado. O Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco (Iterpe) é o órgão responsável pela regularização das propriedades rurais do Programa.