

(De)Cisão, Entre Experiências e Surpresas | Por Daniel Lima
Um dos personagens mais intrigantes na narrativa de “Alice no País das Maravilhas”, conhecido pelo seu inesquecível sorriso é o Gato de Cheshire. O Gato é misterioso, simpático, curioso, assim como a experiência e, como Alice o que queremos é a experiência e nem sempre a surpresa.
Postado em 23/07/2022 11:00
Daniel Lima – Teólogo, Filósofo e Psicanalista/GBPSF/ISFN. @daniellima.pe
“- Gatinho de Cheshire […] Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?
– Isso depende muito de para onde quer ir – responder o Gato.
– Para mim, acho que tanto faz… – disse a menina.
– Nesse caso, qualquer caminho serve – afirmou o Gato.
– … contanto que eu chegue a algum lugar – completou Alice, para se explicar melhor.”(Alice no País das Maravilhas)
Decisões e responsabilidades
É comum ouvirmos pessoas dizerem que estão perdidas existencialmente, sem saber para onde ir. Então, acabam querendo que alguém as direcione, as guie, as conduza e isso também porque muitas vezes não querem arcar com as responsabilidades de tal decisão. Todo tempo, o tempo todo, estamos fazendo escolhas as mais diversas, por menores que sejam, ainda que não percebamos estamos nos movimentando entre isso ou aquilo. Não poucas vezes ter que decidir é uma tarefa difícil e até dolorosa ou mesmo angustiante para muitos. (De)cisão é uma cisão, um corte que às vezes é necessário, porém, isso não quer dizer que seja tarefa fácil.
Um dos personagens mais intrigantes na narrativa de “Alice no País das Maravilhas”, conhecido pelo seu inesquecível sorriso é o Gato de Cheshire. O Gato é misterioso, simpático, curioso, assim como a experiência e, como Alice o que queremos é a experiência e nem sempre a surpresa. Por isso devido ao medo das surpresas, da imprevisibilidade e da perplexidade, queremos que alguém nos mostre um caminho, ainda que não saibamos para onde queremos ir e nem onde queremos chegar. Desta maneira, vamos nos movimentando, entre experiências e surpresas, entre o que esperamos e o que não esperávamos, entre o que queremos e nem sabemos e aquilo que não queremos e sabemos. Se nos movimentamos apenas para chegarmos em algum lugar, como diz o Gato: “qualquer caminho serve”. Porém, saber o que desejamos nos possibilita ir rumo a este desejo. Afinal, vamos até onde vai nosso desejo e identificá-lo não é uma tarefa fácil, mas já é a metade do caminho.
Entre o estranho e familiar
O Gato tem o dom de aparecer e desaparecer, de modo que até parece assustar os seus companheiros e não teme nem a Rainha de Copas. Ele mantém uma postura confiante e apesar de fazer parte da situação, ele age como se estivesse de fora, se tornando quase um observador daquele mundo, o que nos lembra que se quisermos ver melhor determinada coisa é preciso se afastar, tornar-se observador dela para assim percebermos o todo da coisa. Ainda que as respostas do Gato não foram concretas, ele se comporta como uma espécie de guia do País das Maravilhas. Apesar da forma como ele se comporta, o discurso dele demonstra algum tipo de consciência, pois ele está tentando explicar o modo como aquele lugar funciona. Será que em meio a agitação da vida estamos entendendo como estamos mentalmente funcionando diante das situações? Estamos refletindo como somos e por que somos afetados?
Se Alice quiser sobreviver ali ela precisa abandonar as regras e o pensamento lógico, aceitando aquilo que há de estranho e até insano naquele mundo. Isso me lembra um texto de Sigmund Freud de 1919, traduzido pela editora autêntica como o “Infamiliar” (“Das Unheimliche”). Este termo alemão já foi traduzido como “o estranho”, “O inquietante”, “A inquietante estranheza”, “O inquietante familiar”, etc. o que mostra que traduzir o intraduzível é um desafio. Neste texto Freud mostra a especificidade de um mecanismo específico bastante frequente, uma espécie de sensação ligada a angústia e ao horror que experimentamos como algo que está muito perto de nós e ao mesmo tempo muito longe, muito estranho e muito familiar, muito próximo e muito inquietante – “Algo desse domínio é o ‘infamiliar’. Não há nenhuma dúvida de que ele diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, e, de todo modo, estamos seguros de que essa palavra nem sempre é utilizada num sentido rigoroso, de tal modo que, em geral, coincide com aquilo que angustia […].” (Freud, “O infamiliar”). Alice assim segue entre o horror e a angústia, entre o que estava próximo e também inquietava, entre a estranheza e a familiaridade daquele lugar.
Loucura é abrir mão de ser você mesmo
Curiosamente, o Gato de Cheshire descreve aquela realidade como um local governado pela loucura, que acaba contagiando seus habitantes. Existe um dito popular que diz: “De médico e louco, todo mundo tem um pouco”. Sendo assim, cabe lembrar que nem sempre a loucura é uma condição oposta à normalidade ou à racionalidade, mas algo que pode ocorrer inclusive na própria normalidade e racionalidade, porém, não me aprofundarei nisso, pois é assunto para um outro texto. Ali naquele mundo até mesmo Alice com o tempo vai esquecendo as suas lições e reproduzindo os comportamentos daquele país que de imediato lhe parecem absurdo. O Gato também vem relembrar que sanidade e loucura são conceitos relativos, por exemplo, naquele contexto, é a conduta inquisitiva e racional de Alice que se destaca e parece ridícula.
Portanto, se queremos seguir, ou mesmo pararmos um pouco para repensar, ou ainda rompermos com algo, o importante é que essa decisão precisa partir de nós mesmos. Não abrir mão de quem somos, de quem estamos sendo, muitas vezes até pode parecer loucura para muitos, mas uma das maiores experiências que podemos desfrutar é mergulharmos em nós mesmos e nos depararmos com as múltiplas surpresas de sermos nós mesmos. Digo surpresas porque aqui e ali, de quando em quando nos surpreendemos com algo que falamos e/ou fazemos. Abraçar, assumir nossas estranhezas contraditórias, ambíguas nos reconciliando com nossa história e indo rumo ao ser humano que queremos ser é uma longa e gratificante jornada. Então, apesar de por vezes o caminho ser estranho saibamos e decidamos o momento de caminhar e de parar.