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Pernambuco, 28 de outubro de 2025

Coluna Psicanálise no Cotidiano

O Quarto Secreto da Alma Digital: o “Bed Rotting” sob o Olhar da Psicanálise

À primeira vista, pode parecer mera preguiça ou um escape da rotina. Mas, como psicanalista, ouso dizer que estamos diante de um sintoma cultural profundo, um grito silencioso da alma contemporânea que a psicanálise tem muito a decifrar.

Postado em 28/09/2025 12:47

Nos tempos de hoje, um fenômeno intrigante tem capturado a atenção e, por vezes, a culpa de muitos jovens e adultos: o “bed rotting”. Passar horas a fio na cama, imerso em telas, rolagens infinitas e streamings, não é mais apenas um luxo ocasional, mas um hábito que, para muitos, se tornou um refúgio. À primeira vista, pode parecer mera preguiça ou um escape da rotina. Mas, como psicanalista, ouso dizer que estamos diante de um sintoma cultural profundo, um grito silencioso da alma contemporânea que a psicanálise tem muito a decifrar.

Freud nos ensinou que não somos senhores em nossa própria casa psíquica, e Lacan radicalizou essa ideia ao afirmar que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Se aplicarmos essa lente ao “bed rotting”, a cama se revela um palco em que o inconsciente se manifesta. A linguagem, aqui, é a digital – a torrente incessante de informações e interações que invadem nosso espaço mais íntimo. Essa imersão digital na cama não é simplesmente “prazer”, mas um tipo particular de gozo: uma satisfação paradoxal que, apesar de trazer cansaço e exaustão, persiste. É uma tentativa de preencher uma falta interna, um vazio existencial, com um fluxo contínuo de estímulos, um esforço para calar a angústia diante de um mundo que nos cobra e nos desorienta. O “bed rotting” pode se tornar, para alguns, um sintoma, uma solução única e singular – ainda que sofrida – para dar alguma consistência a si mesmo diante da fluidez e da fragmentação da vida moderna.

As relações também se reconfiguram nesse cenário. A psicanálise relacional nos mostra que, enquanto a cama deveria ser um porto seguro para as relações íntimas e pessoais, ela se torna um refúgio de interações mediadas por telas. O reconhecimento mútuo que buscamos na vida real é substituído por validações efêmeras e superficiais nas redes sociais. Esse isolamento, ainda que digitalmente conectado, reflete uma dificuldade de sustentar encontros genuínos. Pensemos no “digital haunting” – revisitar perfis antigos, mensagens arquivadas. Não seria uma forma de tentar reelaborar experiências não formuladas, vínculos passados que ecoam em nosso presente, num contato fantasmático com o que já foi? A análise, nesse ponto, oferece um espaço de escuta sem a pressão do “like” ou da resposta imediata, onde podemos, enfim, formular essas experiências e buscar novas formas de estar em relação.

D.W. Winnicott nos falaria sobre o verdadeiro self e o falso self. A cama, que idealmente deveria ser um ambiente de sustentação para o nosso eu mais autêntico, transforma-se num palco onde o falso self, adaptado às incessantes demandas de produtividade e à espetacularização da vida online, atua exaustivamente. O “bed rotting”, de certa forma, é uma tentativa (ainda que paradoxalmente aprisionadora) de proteger o verdadeiro self de um mundo percebido como excessivamente intrusivo. Perde-se, contudo, o espaço potencial – aquele entre o mundo interno e o externo, onde a criatividade e o brincar podem florescer. A cama se torna então um local de consumo passivo, que não nutre o que há de mais vital em nós.

E Jean Laplanche nos alertava para as mensagens enigmáticas que a própria cultura digital nos “implanta”. A sociedade exige alta performance, mas também prega o “desconecte-se”; exige originalidade, mas padroniza comportamentos. Essa sedução generalizada e contraditória gera um mal-estar que se manifesta no nosso corpo falante: a fadiga crônica, a insônia apesar de horas na cama, a dificuldade de sair dela. Nosso corpo, nesse contexto, grita o peso dessas exigências.

O “bed rotting” não é, portanto, um capricho, mas um convite urgente à ética do desejo. A psicanálise não oferece uma receita para sair da cama ou um manual de “detox digital”. Ela propõe um caminho de decifração. Por meio da análise, somos convidados a investigar: o que me impulsiona a essa permanência? Que gozo (e sofrimento) extrai dela? Quais relações estou evitando ou buscando fantasticamente? Que parte de mim se sente exausta e por quê?

Ao invés de patologizar ou julgar, a psicanálise busca compreender o porquê desse sintoma. É um convite para desvendar as complexas camadas do inconsciente que nos levam a transformar o santuário do sono em uma espécie de prisão digital. Somente ao darmos voz a essa mensagem cifrada, podemos, talvez, encontrar um novo lugar para o descanso e, mais importante, para o nosso verdadeiro eu em um mundo cada vez mais conectado e, ironicamente, cada vez mais solitário. É a possibilidade de sair da “cama psíquica” e habitar o mundo com maior liberdade e autenticidade.