O encerramento de ciclos: uma reflexão psicanalítica sobre a “dezembrite”
Freud nos ensina que a psique é movida por forças ambivalentes: o desejo de satisfação e o medo do fracasso, a busca pelo novo e a resistência ao desconhecido.
Postado em 11/12/2024 2024 08:46 , Coluna Psicanálise no Cotidiano. Atualizado em 11/12/2024 08:46
O final do ano é um convite silencioso para o balanço existencial. Entre as luzes das festividades e a contagem regressiva para o novo ciclo, emerge um ritual quase universal: revisitar o passado e projetar o futuro. Contudo, essa prática, aparentemente natural, carrega consigo tensões profundas, nas quais o sujeito, muitas vezes, se vê refém de expectativas culturais e internas que o exaurem. A “dezembrite”, com seus sintomas de cansaço, irritabilidade e sensação de insuficiência, pode ser compreendida, na perspectiva psicanalítica, como a emergência de conflitos inconscientes catalisados pela pressão de fechamento de ciclos.
Freud nos ensina que a psique é movida por forças ambivalentes: o desejo de satisfação e o medo do fracasso, a busca pelo novo e a resistência ao desconhecido. No período de encerramento do ano, o superego – a instância moral e crítica do aparelho psíquico – parece intensificar sua vigilância. Ele exige do sujeito um inventário implacável: o que foi alcançado e o que ficou para trás? Sob esse olhar severo, desejos reprimidos e metas não realizadas podem ser experimentados como falhas, reacendendo um senso de inadequação que muitas vezes remonta à infância, quando a aprovação externa definia o valor pessoal.
Por sua vez, Donald Winnicott oferece uma perspectiva mais compassiva ao sugerir que a saúde psíquica depende da capacidade de acolher a espontaneidade e o jogo no espaço potencial entre o interno e o externo. A “dezembrite” pode ser vista como um colapso desse espaço, onde a sobrecarga de demandas externas impede o sujeito de acessar suas necessidades autênticas. A idealização de festas perfeitas e conquistas irrepreensíveis desloca o foco do viver criativo para o desempenho social, fragmentando a conexão com o self verdadeiro.
Nesse contexto, a ideia de estabelecer limites – tão enfatizada por especialistas – ganha um significado profundo. Sándor Ferenczi, em sua ênfase na gentileza e na reparação, nos lembra da importância de escutar o próprio sofrimento. Dizer “não” a compromissos desgastantes ou a expectativas irreais não é apenas um ato de autopreservação, mas também um gesto de respeito à própria subjetividade. É reconhecer que, para além das metas externas, há um desejo interno de acolhimento, de cuidado e de tempo para ser.
O fim do ano também evoca a teoria de Melanie Klein sobre as posições depressiva e esquizoide. Revisitar metas não cumpridas pode reativar sentimentos de culpa e perda, mas também oferece a oportunidade de reparação. No entanto, para que essa reparação seja genuína, é preciso permitir que as falhas sejam integradas como parte da experiência humana, em vez de serem vistas como algo a ser apagado ou compensado. A verdadeira transformação não está em um novo ciclo idealizado, mas na aceitação de que a incompletude faz parte da condição humana.
Assim, resgatar o “verdadeiro sentido” do final do ano significa ir além das exigências culturais e reencontrar-se com o que é essencial: a capacidade de criar significado, mesmo diante da imperfeição. Como a psicanálise nos mostra, o sujeito não é definido pelo que falta ou pelo que sobra em sua lista de metas. Ele é, antes de tudo, um ser em construção, cuja riqueza está na profundidade de suas experiências e na singularidade de seu percurso. O desafio da “dezembrite” é, portanto, menos sobre encerrar ciclos e mais sobre abraçar a complexidade do que é estar vivo.
Daniel Lima
Teólogo, filósofo e psicanalista.
Psicanalista membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi – GBPSF.
Pós-graduado em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia.
Pós-graduado em Psicanálise e Teoria Analítica.
www.psicanalisedaniellima.blogspot.com
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@daniellima.pe