

Amor líquido na tela: a “tinderização” das relações e o novo mal-estar afetivo
Aplicativos de namoro redefinem encontros, mas psicanalistas e sociólogos alertam para a superficialidade, a descartabilidade e o impacto na saúde mental. Por que “dar match” nem sempre significa amar?
Postado em 08/04/2025 03:30
Daniel Lima, psicanalista (GBPSF/SPID). Pós-graduando em psicanálise e saúde mental: a clínica contemporânea; Pós-graduado em psicanálise e análise do contemporâneo; Pós-graduado em psicanálise e teoria analítica. www.psicanalisedaniellima.blogspot.com daniellimagoncalves.pe@gmail.com @daniellima.pe (87)99210-5658
Este conceito, que vai além do uso do aplicativo em si, descreve uma lógica de consumo e descartabilidade que se infiltra nos vínculos afetivos, transformando-os em produtos numa vitrine digital. “Não se trata apenas de uma mudança na logística dos encontros, mas de uma profunda reconfiguração do cenário psíquico onde o amor e o desejo se manifestam”, explica um estudo recente que une psicanálise e teoria social.
Sociedade do Descarte: Vínculos Fragilizados
Para entender a “tinderização”, é preciso olhar para a sociedade em que vivemos. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra “Amor Líquido”, já alertava para a “modernidade líquida”, onde os laços sociais se tornam fluidos, frágeis e facilmente descartáveis. Os aplicativos, nesse contexto, funcionam como um espelho e um amplificador dessa fluidez, segundo o artigo. “A ação de ‘deslizar’ para escolher, ‘conectar’ para experimentar e ‘desfazer’ com um simples toque não é apenas uma metáfora; é a materialização de uma lógica de mercado aplicada às emoções”, aponta a pesquisa.
A socióloga Eva Illouz complementa essa visão, mostrando como o capitalismo transformou a intimidade em um campo regulado pela eficiência e pela maximização do prazer. Nossos perfis online, com fotos e descrições cuidadosamente selecionadas, são como currículos afetivos, otimizados para atrair e gerar “matches”. “As emoções são racionalizadas e quantificadas – o número de ‘matches’ ou ‘likes’ funciona como métrica de validação”, diz o estudo. Isso gera uma pressão para performar a própria subjetividade, tornando a vulnerabilidade, essencial para laços profundos, cada vez mais rara.
O filósofo Byung-Chul Han critica a “sociedade do desempenho” e o narcisismo exacerbado. Nos aplicativos, o outro é muitas vezes reduzido a uma projeção narcísica, alguém que valida, confirma e satisfaz as expectativas do próprio ego. A “era da hiper-validação” nos torna obcecados pela autoafirmação, e a ausência de um “match” ou a falta de resposta pode ser sentida como uma profunda rejeição pessoal.
O Desejo em Tempos de “Match”: A Promessa de Plenitude e a Frustração
A psicanálise, desde Freud, nos ensina que o desejo humano é estruturado pela falta. Nunca estamos plenamente satisfeitos. Contudo, os aplicativos de encontro parecem prometer o oposto: a ilusão de que podemos encontrar um “par perfeito” que preencherá todas as nossas necessidades, a partir de imagens e algoritmos.
“Essa lógica de completude imaginária obscurece a alteridade radical do outro e a falta estrutural que o amor e o desejo supõem”, destaca o estudo. O desejo, mediado por imagens idealizadas na tela, pode cair em circuitos repetitivos de busca e frustração. É o paradoxo: quanto mais opções, maior a insatisfação, pois a busca pelo “ideal” nos impede de investir no “real” do encontro.
O psicanalista Jacques Lacan afirmava que o amor é “dar o que não se tem a quem não o quer”, sublinhando a ausência como constitutiva da experiência amorosa. Nos aplicativos, a promessa de “ter” o que se busca pode desvirtuar essa complexidade, levando a uma busca incessante e, muitas vezes, vazia.
A Dor do “Ghosting” e a Repetição do Trauma
A superficialidade das interações online também tem um custo psicológico alto. O “ghosting” – quando alguém desaparece de repente, sem explicação – é um fenômeno comum nesses ambientes e exemplifica a lógica de desinvestimento e descarte. O outro é silenciado, esquecido, como se nunca tivesse existido.
Para psicanalistas como André Green e Donald Winnicott, essa prática revela a dificuldade de lidar com a alteridade do outro. Winnicott defendia que a maturidade exige reconhecer o outro em sua autonomia, com suas imperfeições. Green alertava para o risco de desinvestimento: relações que começam intensas, mas perdem valor rapidamente.
Mais ainda, essa dinâmica pode reativar feridas afetivas profundas. Sándor Ferenczi, outro expoente da psicanálise, mostrou como experiências precoces de rejeição ou abandono podem se repetir inconscientemente nos vínculos atuais. A frieza dos silêncios e a instabilidade dos “matches” podem reencenar traumas antigos, reforçando sentimentos de não ser digno de amor ou de estar sempre prestes a ser abandonado.
O psicanalista Antonino Ferro, da escola pós-bioniana, enfatiza a importância de um “campo intersubjetivo” – um espaço de troca e elaboração – para a construção de narrativas emocionais. A velocidade e a descartabilidade dos aplicativos empobrecem esse campo, impedindo que as experiências emocionais complexas sejam processadas, resultando em mais angústia e dificuldade de elaborar perdas e desilusões.
Amar como Resistência
A “tinderização” das relações, portanto, não é apenas uma moda passageira, mas uma expressão profunda do mal-estar nos vínculos afetivos contemporâneos. A psicanálise nos convida a escutar essa dor em sua complexidade, reconhecendo os desejos, defesas e traumas que se manifestam nessas novas formas de se relacionar.
“O amor, como experiência que exige tempo, abertura à alteridade, risco simbólico e a capacidade de integrar as ambivalências, parece cada vez mais ameaçado por uma cultura do descarte e da gratificação imediata”, conclui o estudo.
Diante desse cenário, amar de forma autêntica pode se tornar um ato de resistência. Significa apostar no tempo longo, na presença genuína, na aceitação da imperfeição do outro e na transformação mútua. O verdadeiro desafio não é encontrar um “match”, mas sustentar o desejo diante da falta, acolher o outro em sua diferença e permitir que o encontro se torne vínculo, afeto e uma construção conjunta, para além da tela.