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Pernambuco, 05 de outubro de 2025

Coluna Psicanálise no Cotidiano

Apostas online: o que está em jogo no psiquismo do sujeito?

Uma reflexão psicanalítica sobre desejo, emoção e transformação

Postado em 20/07/2025 18:18

Colunista

Daniel Lima, psicanalista (GBPSF/SPID). Pós-graduado em psicanálise e análise do contemporâneo; Pós-graduado em psicanálise e teoria analítica. www.psicanalisedaniellima.blogspot.com daniellimagoncalves.pe@gmail.com @daniellima.pe (87)99210-5658

 

A aposta atualmente está ao alcance de um clique. Vivemos em uma era digital em que celulares e telas não apenas mediam nossa relação com o mundo, mas também se tornaram autênticas extensões do nosso corpo e do nosso aparelho psíquico. As redes, plataformas e aplicativos parecem potencializar a velocidade com que desejos, fantasias e ansiedades podem ser atualizados – ou mesmo fabricados – em tempo real. Nesse cenário, o universo das apostas online ganha relevância: nunca foi tão simples mergulhar nesse ambiente de riscos calculados, promessas de ganhos rápidos e excitação constante. O convite à aposta chega por notificações, banners e algoritmos personalizados. Surge, então, a pergunta fundamental: o que está em jogo para o sujeito que aposta, para além do desejo explícito de ganhar dinheiro?

Para refletir sobre essas questões, é produtivo recorrer ao pensamento de dois grandes psicanalistas contemporâneos: Antonino Ferro e Christopher Bollas. Suas teorias ampliam a compreensão sobre o fenômeno das apostas, superando a análise superficial que enxerga apenas o aspecto econômico ou moral. Ambos nos convocam a ouvir o que se passa nas profundezas da subjetividade, ali onde o sujeito, mobilizado pela promessa oferecida pelo jogo, busca algo mais do que o simples lucro – busca transformar experiências psíquicas, narrar emoções e reinventar sua própria existência.

Apostar é criar narrativas internas

Antonino Ferro renova a leitura psicanalítica ao entender a mente como uma criadora constante de histórias internas. Para ele, o sujeito está sempre metabolizando emoções brutas – como ansiedade, excitação, medo ou esperança – e as transformando em cenas, personagens, roteiros. As apostas online oferecem, nesse sentido, um palco privilegiado para essas dramatizações inconscientes. Cada rodada, cada aposta, cada expectativa de vitória ou de decepção reencena uma narrativa psíquica única, dando movimento e elaboração a sentimentos cotidianos por vezes difíceis de nomear ou suportar. O sujeito aposta não apenas para ganhar, mas para manter viva essa trama interna: uma coreografia emocional que, dentro das regras do jogo, permite experimentar riscos e limites que na vida real, muitas vezes, são temidos ou proibidos. O jogo, então, torna-se um laboratório da emoção, onde a rotina pode ser rompida, a mesmice superada e o drama existencial reencenado, sempre em busca de novas possibilidades de sentido.

O objeto transformacional do jogo

Christopher Bollas acrescenta uma perspectiva igualmente potente ao abordar a noção de “objetos transformacionais”. Para ele, buscamos continuamente experiências, pessoas e situações que sejam capazes de provocar mudanças significativas em nosso mundo interno. Trata-se de uma busca quase vital por objetos — concretos ou simbólicos — que ofereçam a promessa de sermos, nem que por alguns instantes, atravessados por algo novo, surpreendente, renovador. No contexto das apostas online, o jogo se apresenta como esse objeto transformacional: um canal no qual o sujeito projeta esperanças de ruptura com a rotina, de renovação psíquica ou de recomposição de algo sentido como faltante. O ato de apostar carrega a expectativa de que algo será diferente a cada nova rodada, de que a experiência terá o poder de modificar, ainda que temporariamente, o estado emocional de quem joga. Não se trata apenas de buscar fortuna material, mas sobretudo de aspirar à sensação de estar vivo, implicado e sensível ao acaso e às possibilidades que o jogo acena.

Nem só jogo: risco de automatização e esvaziamento

Entretanto, tanto Ferro quanto Bollas deixam um alerta importante: o potencial criativo do jogo existe, mas pode ser esvaziado em nome da repetição. Na era digital, em que tudo se apresenta de forma imediata, cresce o risco de que o sujeito se prenda ao automatismo, transformando uma experiência rica em elaboração psíquica em uma rotina estéril, guiada pela compulsão. O que antes servia como terreno fértil para a imaginação, para a construção de novas histórias, pode se cristalizar em um ciclo de repetições sem sentido, no qual o prazer dá lugar ao tédio, à anulação da subjetividade e ao sentimento de alienação. Nesse ponto, as apostas online deixam de ser fonte de experiências transformacionais e passam a funcionar como sintoma do esvaziamento emocional, tornando-se uma engrenagem que captura o sujeito, retirando dele sua agência e a capacidade de criar novas narrativas. O sujeito aposta, mas é como se não estivesse mais verdadeiramente presente — já não é ele quem joga, mas o jogo que joga através dele.

Um cuidado que escute o drama

Essa perspectiva implica um grande desafio para as políticas públicas, para as famílias e para os profissionais da área da saúde mental. Mais do que tratar o fenômeno das apostas online como um mero problema econômico ou como questão de caráter, é necessário olhar para a complexidade do “sujeito em jogo” e para suas experiências emocionais. O cuidado não pode se limitar à repressão ou ao medo, senão corre o risco de reforçar o ciclo de isolamento e alienação. É essencial criar espaços de escuta e acolhimento, onde seja possível narrar, imaginar e experimentar novas formas de viver o desejo de transformação. Estratégias de prevenção e intervenção devem ir além dos discursos moralizantes: é preciso compreender que o apostador busca sentido, renovação, emoção e possibilidade de romper com a rotina — mesmo que, muitas vezes, encontre apenas uma versão repetitiva desse desejo. O desafio está em oferecer alternativas subjetivamente ricas, que ajudem o sujeito a encontrar outras formas de elaborar seus dramas internos, evitando que sua existência se reduza a uma eterna roleta virtual.

No fim das contas, pensar o sujeito em jogo na era digital é reconhecer que todos nós, de algum modo, buscamos na vida cotidiana experiências que nos transformem, renovem e dêem sentido à nossa trajetória. As apostas online, sob o olhar atento de Ferro e Bollas, revelam-se não apenas um fenômeno social de massa, mas um espelho da busca humana por narrativa, transformação e autenticidade.