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Pernambuco, 05 de outubro de 2025

Coluna Psicanálise no Cotidiano

A alma em tempos digitais: o custo oculto da vida hiperconectada

Com a experiência de quem há pouco mais de uma década escuta as dores da alma e observa as reviravoltas do nosso mundo, dedico-me hoje a conversar sobre um sofrimento que parece sussurrar – ou gritar – em muitos corações. Falo dos desafios que a nossa alma enfrenta nesses tempos tão conectados, onde o excesso da vida online pode, paradoxalmente, nos desconectar de nós mesmos. Para a nossa coluna no jornal do sertão, convido a um olhar mais profundo, aquele que a psicanálise nos permite.

Postado em 24/08/2025 00:21

Colunista

Daniel Lima, teólogo, filósofo e psicanalista. Psicanalista membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi – GBPSF; Pós-graduado em filosofia e autoconhecimento – PUC/RS; Pós-graduado em ciências humanas: sociologia, história e filosofia – PUC/RS; Pós-graduado em psicanálise e análise do contemporâneo – PUC/RS. Pós-graduado em psicanálise e teoria analítica – FATIN. www.psicanalisedaniellima.blogspot.com daniellimagoncalves.pe@gmail.com @daniellima.pe  

Na minha sala de atendimento, assim como em tantos lares e conversas de amigos, o sofrimento tem mostrado uma nova cara. A psicanálise, que sempre se debruçou sobre os emaranhados da mente humana, percebe que as angústias de hoje, embora tragam ecos antigos, ganham contornos muito próprios na era da internet. Não é mais só a “culpa” ou a “proibição” que pesam, mas uma pressão diferente, que nasce de um mundo que nos convida (e exige) a estar sempre visíveis, sempre “online”, e sempre buscando a perfeição.

Sabe aquela sensação de que a gente nunca está bom o suficiente, por mais que se esforce? O filósofo e sociólogo Alain Ehrenberg, em um livro que nos faz muito pensar, “A Fadiga de Ser Si Mesmo”, nos ajuda a entender. Ele diz que a depressão que vemos hoje não é tanto um conflito lá do fundo da nossa mente, mas uma “doença da responsabilidade”, ou, quem sabe, uma “doença da auto exigência de desempenho”. Antigamente, a sociedade dizia: “você deve fazer isso”. Hoje, a voz parece dizer: “você pode fazer tudo, você tem que ser o seu melhor, o empresário da sua própria vida”. E a internet, com as redes sociais, virou o palco perfeito para essa exigência.

A gente posta uma foto, uma ideia, um momento feliz, e espera as curtidas, os comentários. É como se estivéssemos sempre num teste, avaliando nossa “performance” pessoal. Essa pressão para ser sempre bem-sucedido, feliz, bonito, produtivo, nos esgota. Não é um cansaço físico, de trabalhar na roça, mas um cansaço da alma, de tentar o tempo todo caber num ideal que é quase impossível de alcançar. E aí, a gente se sente “fadigado de ser si mesmo”, exausto de tanto tentar e, muitas vezes, triste sem saber bem por quê.

E o que dizer dos nossos laços, das nossas conversas? A gente se sente conectado por mensagem, por vídeo, mas será que é mesmo um encontro? A psicanalista Jessica Benjamin, com sua forma de entender como a gente se forma nos encontros com os outros, nos lembra de algo muito importante: não basta ser visto; é preciso ser reconhecido. Não é só aparecer na tela do outro; é preciso que o outro nos enxergue de verdade, com nossas qualidades e nossos desafios, que se abra para a nossa diferença.

No mundo digital, a gente é “visto” em pedacinhos: uma foto, um comentário rápido. Dá a ilusão de que a gente está por perto, mas muitas vezes falta aquele espaço para o que é mais complexo na gente e no outro. O “curtir” é um espelhinho, mas raramente é o abraço de reconhecimento profundo que a alma precisa para se sentir segura e valorizada. E quando falta esse reconhecimento de verdade, mesmo cercado de milhares de “amigos” virtuais, a gente pode se sentir profundamente sozinho e vazio.

Por fim, já notou como a gente acaba se parecendo um pouco com todo mundo ali na internet? O psicanalista Christopher Bollas nos ajuda a pensar nisso com a ideia do “indivíduo normótico”. É como se a gente, na busca por se encaixar e ser “normal” (no padrão da rede), fosse esvaziando aquela parte mais autêntica da gente. A gente automatiza as respostas, perde a espontaneidade, o jeito único de ser. Os algoritmos das redes sociais são mestres em nos mostrar o que está na moda, o que é esperado, e a gente, para ganhar visibilidade e aceitação, acaba se moldando.

Essa pessoa “digitalmente normótica” se apresenta de um jeito que sabe que vai ser aceito, mas isso tem um custo: a gente perde o contato com nossos próprios desejos, com aquele “eu verdadeiro” que nos faz únicos. Essa adaptação constante ao que é de fora, ao que os outros esperam, nos impede de viver experiências emocionais mais profundas e de sentir que somos, de fato, donos de nós mesmos. Aí, o vazio e a sensação de não pertencer a si mesmo acabam aparecendo.

Em resumo, a psicanálise de hoje nos acende um alerta: essa vida online sem limites, com todas as suas promessas de conexão e sucesso, muitas vezes nos empurra para um lugar de exaustão, solidão e um certo “esvaziamento” do que somos. Em vez de nos aproximar, a rede pode nos aprisionar em relações superficiais e numa performance sem fim, nos afastando da nossa própria essência.

E aqui no sertão, a gente sabe bem o valor de uma boa sombra, de uma conversa olho no olho, do tempo que a gente passa pensando e sentindo a vida de verdade. Precisamos redescobrir a importância da pausa, do encontro autêntico, do silêncio que nos permite nos ouvir, e da capacidade de estar consigo mesmo. É nessa redescoberta que reside a nossa chance de aliviar a fadiga da alma e de encontrar um sentido mais verdadeiro para a nossa caminhada, mesmo nesses tempos tão cheios de pressa e telas.