


O Carrinho Vazio e o Coração Cheio
A Black Friday revela algo profundo sobre a condição humana: nossa relação complexa com o desejo e a falta. Freud descobriu que somos seres constituídos pela falta — não uma deficiência, mas o motor que nos move. O marketing explora isso vendendo não objetos, mas promessas de completude.
Postado em 26/10/2025 08:30

Lacan mostrou que desejamos sempre o reconhecimento do Outro. Compramos identidades: o tênis não é calçado, é status; o smartphone não é tecnologia, é pertencimento. A Black Friday teatraliza nossas ansiedades – contadores regressivos dramatizam nossa finitude, “últimas unidades” mobilizam nosso medo de exclusão.
Distinguir desejo de necessidade é crucial. A necessidade tem contornos objetivos (aquecedor no frio); o desejo é simbólico, infinito (reconhecimento social). Confundir ambos nos leva ao “imperativo consumista”: consumir como dever moral.
Por que comprar alivia momentaneamente? Oferece ilusão de controle, transforma ansiedade em ação. Mas o alívio é temporário – o objeto real jamais coincide com o fantasiado. A compulsão por compras fala de outras questões: solidão, ansiedade, vazio existencial.
Resistir não significa ascetismo, mas consciência. Estratégias incluem temporalizar impulsos (esperar 24h), questionar (“o que realmente busco?”). e higiene digital (desativar notificações).
O maior desconto talvez seja distinguir entre o que precisamos e o que nos fazem crer que precisamos. Entre ter e ser. A felicidade duradoura vem não da satisfação de todos os desejos, mas da capacidade de simbolizar e, quando necessário, adiar.
Não se trata de demonizar o consumo, mas de desenvolver relação mais consciente com nossos desejos, mais crítica com promessas do mercado. O carrinho pode estar vazio sem que o coração precise estar. Às vezes, a maior abundância está em reconhecer quando já temos o suficiente.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe