


Finados: o que permanece quando tudo passa
Em Luto e Melancolia, Freud diferencia o luto da melancolia. No luto, o sujeito reconhece a perda e, pouco a pouco, se reconcilia com a realidade. Na melancolia, a perda é negada, e a dor se volta contra o próprio eu. Em vez de dizer “perdi alguém”, o sujeito sente-se “perdido”. Por isso, Finados tem uma função psíquica tão importante: ele autoriza o luto, dá lugar social e tempo simbólico à dor, impedindo que ela se transforme em silêncio destrutivo. Lamentar é, paradoxalmente, um modo de preservar a vida.
Postado em 02/11/2025 13:59

O Dia de Finados nos convida a algo que o mundo contemporâneo evita: parar. Parar diante da ausência, diante do silêncio, diante do que não tem conserto. Em uma cultura que exige produtividade e movimento, esse dia introduz uma pausa simbólica — uma interrupção necessária para lembrar que viver implica perder. A psicanálise, desde Freud, nos ensina que o sujeito não se forma apenas pelo que possui, mas também pelo que perde. Somos feitos das presenças que nos marcaram, e também das ausências que nos atravessaram.
Lembrar os mortos não é um gesto de nostalgia, mas de reconhecimento. Ao acender uma vela, ao pronunciar um nome, ao visitar um túmulo, transformamos a perda em linguagem. O ritual dá corpo ao invisível e organiza o indizível. Freud chamava de “trabalho do luto” esse processo pelo qual o amor, ferido pela ausência, vai se traduzindo em palavras, memórias, símbolos. Elaborar o luto é aceitar que algo acabou — mas também descobrir que algo permanece. O outro, mesmo ausente, continua vivo em nós de outro modo: como traço, voz, gesto, sonho.
Em Luto e Melancolia, Freud diferencia o luto da melancolia. No luto, o sujeito reconhece a perda e, pouco a pouco, se reconcilia com a realidade. Na melancolia, a perda é negada, e a dor se volta contra o próprio eu. Em vez de dizer “perdi alguém”, o sujeito sente-se “perdido”. Por isso, Finados tem uma função psíquica tão importante: ele autoriza o luto, dá lugar social e tempo simbólico à dor, impedindo que ela se transforme em silêncio destrutivo. Lamentar é, paradoxalmente, um modo de preservar a vida.
Os rituais — religiosos ou íntimos — funcionam como mediadores entre o mundo interno e o mundo externo. Winnicott chamaria isso de espaço transicional: um campo intermediário, onde o real e o imaginário se tocam. Ao limpar um túmulo, ao tocar uma foto, ao preparar um prato que o falecido gostava, criamos um espaço simbólico que permite suportar a ausência. Esses gestos simples ajudam a transformar o desamparo em cuidado, o desespero em memória. Onde há ritual, há moldura; e onde há moldura, a dor pode ser olhada.
Bion, por sua vez, lembraria que o luto exige uma mente capaz de conter. Diante da perda, as emoções surgem como elementos brutos — sem nome, sem forma, sem pensamento. Precisamos de alguém, ou de um espaço simbólico, que funcione como continente: que acolha e dê forma ao que ainda não pode ser dito. É o que faz o analista, é o que faz o rito. Ambos sustentam a dor até que ela se torne pensável. Nesse sentido, falar — ou até sonhar — com os mortos é menos um sinal de loucura e mais um trabalho da memória inconsciente que busca continuidade.
Finados, então, não é apenas uma data religiosa. É um lembrete psíquico de que o amor é indestrutível, mas muda de endereço. O que morre é a presença física; o vínculo, não. Continuamos sendo escritos por quem amamos. A cada lembrança, a cada palavra que revive um nome, reinscrevemos o outro em nossa história, agora em outro registro — o simbólico. Elaborar o luto é isso: aprender a viver com o que falta, sem deixar de amar o que foi.
Talvez por isso os cemitérios silenciem tanto. Ali, entre flores e epitáfios, não há respostas — há ecos. E é nesses ecos que o sujeito reencontra algo de si mesmo. Finados nos devolve a possibilidade de uma escuta: não apenas dos mortos, mas do que em nós também precisa morrer para que algo novo possa nascer.
Porque viver, como o luto, é sempre uma forma de continuar — apesar da falta.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe