

Entre likes e solidão: navegando a psique na era digital
Afinal, por que nos sentimos tão sós quando estamos tão conectados? A psicanálise contemporânea oferece algumas lentes poderosas para decifrar essa angústia
Postado em 02/08/2025 15:10
Daniel Lima, psicanalista (GBPSF/SPID). Pós-graduado em psicanálise e análise do contemporâneo; Pós-graduado em psicanálise e teoria analítica. www.psicanalisedaniellima.blogspot.com daniellimagoncalves.pe@gmail.com @daniellima.pe (87)99210-5658
Vivemos em um mundo hiperconectado, onde a palma da nossa mão nos dá acesso a uma rede infinita de informações e pessoas. Nossos telefones vibram com notificações, convidando-nos a interagir, compartilhar e receber. No entanto, por trás da aparente abundância de “conexões”, muitos de nós experimentamos uma crescente sensação de solidão, um vazio que nem mil “likes” são capazes de preencher. Este é o paradoxo da era digital, e suas implicações para nossa saúde mental são profundas.
Afinal, por que nos sentimos tão sós quando estamos tão conectados? A psicanálise contemporânea oferece algumas lentes poderosas para decifrar essa angústia.
A armadilha do “like” e a performance do Eu Ideal
Pense na incessante busca por “likes” e aprovação online. Ela não é apenas uma vaidade superficial. É, na verdade, uma manifestação de uma necessidade humana muito profunda: a de sermos vistos, reconhecidos e validados. O problema é que, no ambiente digital, essa validação se torna uma performance. Postamos apenas o melhor de nós, os momentos “perfeitos”, a vida “curada”. Construímos um “eu” ideal, uma fachada polida que busca o aplauso alheio.
Essa performance, embora gere um alívio momentâneo com cada “curtida”, impede que nossas experiências mais verdadeiras – as falhas, as imperfeições, as emoções difíceis – sejam sentidas e processadas. Como aponta o psicanalista Christopher Bollas, muitas de nossas vivências permanecem “não-pensadas”, ou seja, sentidas mas não integradas à nossa consciência. Na era dos “likes”, a gratificação imediata pode nos desviar da necessidade de olhar para essas partes “não-pensadas” de nós mesmos, alimentando um ciclo vicioso de busca por aprovação externa que nunca sacia a fome de um reconhecimento mais autêntico. O vazio persiste porque o que está sendo aplaudido não é quem realmente somos.
Relacionamentos líquidos: a fuga da intimidade profunda
O sociólogo Zygmunt Bauman já nos alertava sobre a “liquidez” dos relacionamentos na modernidade. Na era digital, essa liquidez se intensifica. Amizades são feitas e desfeitas com um clique; romances podem começar e terminar com um “desmatch”. A facilidade de “dar ghosting” (sumir sem explicações) ou de “unfollow” reflete uma intolerância crescente à frustração, ao conflito e, sobretudo, à vulnerabilidade que a intimidade real exige.
Para o psicanalista Thomas Ogden, as interações autênticas demandam um “campo analítico” onde as mentes se encontram e as emoções brutas (o que ele chama de “elementos beta”) podem ser recebidas e transformadas em algo pensável (“elementos alfa”). No entanto, a superficialidade e a velocidade das interações digitais muitas vezes criam um campo empobrecido. Não há espaço para essa “reverie”, para a capacidade de “sonhar” e metabolizar as emoções do outro (e as nossas). Nossas ansiedades, frustrações e vulnerabilidades ficam sem um “continente”, sem um espaço de acolhimento. Sentimo-nos, então, sós, mesmo cercados por centenas de “amigos” virtuais, porque ninguém está realmente “contendo” ou processando nossa experiência afetiva profunda.
Somando a isso, Antonino Ferro, outro psicanalista de campo, enfatiza a importância da narrativa para dar sentido à nossa experiência. Precisamos contar e recontar nossas histórias, conectando os pontos para formar um todo coerente. O universo digital, com seu fluxo constante de informações fragmentadas e conteúdos curtos, dificulta a construção dessas narrativas. Nossas vidas online são uma colagem de momentos isolados, raramente uma trama contínua. Essa fragmentação narrativa se estende aos nossos relacionamentos, que, por serem “líquidos”, não permitem a construção de histórias conjuntas, de um repertório compartilhado que dê profundidade e significado.
O preço da superficialidade e o caminho para a autenticidade
O custo desse cenário para nossa saúde mental é alto. Ansiedade, vazio existencial, dificuldade em estabelecer vínculos duradouros e um senso de inautenticidade são apenas alguns dos sintomas. Estamos sempre “ligados”, mas raramente profundamente “conectados” a nós mesmos ou aos outros.
Então, o que fazer? Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de um convite à reflexão.
Questionar a performance: Comece a notar o quanto você se curva à necessidade de ser “perfeito” online. Permita-se ser vulnerável, postar menos sobre o “ideal” e mais sobre o “real”. O verdadeiro reconhecimento vem da aceitação da sua autenticidade.
Cultivar vínculos reais: Priorize encontros presenciais, conversas profundas, e a construção de relacionamentos que permitam a troca genuína de emoções, mesmo as difíceis. Busque pessoas que sejam capazes de “conter” suas emoções e de construir narrativas junto com você.
Tolerar o vazio: O tédio, a solidão e o “nada para fazer” podem ser incômodos no início, mas são espaços valiosos para a auto-reflexão e o contato com suas experiências “não-pensadas”. Desligue o celular de vez em quando e apenas “esteja”.
Aprender a narrar: Reserve tempo para refletir sobre seus dias, suas experiências, seus sentimentos. Escreva um diário, converse com alguém de confiança. Ajude sua mente a conectar os pontos e a construir a história da sua vida, em vez de vivê-la em fragmentos.
A era digital é uma ferramenta poderosa, mas não deve ser a lente única pela qual enxergamos a nós mesmos e aos outros. A verdadeira conexão e uma saúde mental mais robusta florescem quando nos permitimos ser imperfeitos, abraçar a vulnerabilidade e construir relacionamentos que transcendam a tela, baseados na profundidade e no autêntico reconhecimento. É um trabalho constante, mas fundamental para que, entre tantos “likes”, possamos encontrar a paz da verdadeira conexão.