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Pernambuco, 05 de outubro de 2025

Coluna Psicanálise no Cotidiano

O preço da alma digital: uma reflexão profunda sobre a infância roubada na era da exposição

A era digital, com sua promessa de conectar mundos e democratizar o acesso à informação, desvela-se, paradoxalmente, como um campo fértil para as mais brutais distorções da condição humana

Postado em 17/08/2025 10:00

Colunista

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

 

Recentemente, a contundente denúncia de Felca, que trouxe à tona a adultização e sexualização de crianças e adolescentes em plataformas digitais, expôs uma realidade estarrecedora: a infância transformada em conteúdo, a inocência monetizada, e os algoritmos a serviço de interesses, no mínimo, sombrios. No entanto, para além da indignação, que é justa e necessária, precisamos ir mais fundo. O que essa exposição predatória e intrusiva significa para a alma em formação de nossas crianças? Que marcas invisíveis e profundas são gravadas em seu psiquismo?

É neste ponto que a psicanálise, com seus lentes afiadas, nos oferece um instrumental indispensável para desvendar as complexas camadas dessa tragédia contemporânea. Pensadores como Melanie Klein, Donald Winnicott, Thomas Ogden e Antonino Ferro, embora distantes no tempo dos algoritmos, das curtidas e das métricas de engajamento, munem-nos de ferramentas conceituais para compreender as profundas cicatrizes que essa dinâmica impõe. Eles nos ajudam a decifrar não apenas o que é visível aos olhos – a criança performando, o vídeo viralizando – mas o que se desenrola na intimidade mais sagrada do psiquismo infantil.

A lente kleiniana, por exemplo, nos mostra que quando pais – muitas vezes impulsionados por suas próprias lacunas emocionais, anseios de reconhecimento ou pela desesperadora busca por uma nova fonte de renda – transformam seus filhos em “mini-influenciadores” ou “personagens” de um show online, eles os inserem em uma dinâmica de exploração fundamentalmente narcísica. A criança, reduzida a um mero “objeto parcial” para gerar cliques, visualizações e lucros, é forçada a introjetar uma imagem distorcida de si mesma: a de que seu valor reside em sua capacidade de performar e entreter, e não em seu ser autêntico. Isso rompe a base de segurança e confiança, impedindo o desenvolvimento de um ego coeso e lançando-a em uma constante angústia persecutória, onde o mundo externo é vivido como potencialmente invasivo e fragmentador.

Não há, nesse cenário, o “holding” – a sustentação emocional e a contenção – que Donald Winnicott tanto defendeu como essencial. O ambiente seguro e acolhedor, onde a criança pode ser quem ela é, sem exigências, e onde suas angústias são processadas e devolvidas de forma digerível, é brutalmente substituído por um palco virtual. Pelo contrário, ela é forçada a construir um “falso self” hipertrofiado, uma persona para performar, para sorrir para as câmeras, para corresponder às expectativas de uma audiência invisível, muitas vezes perversa. Esse “falso self” sufoca o “verdadeiro self” – a fonte de sua espontaneidade, sua criatividade, sua capacidade de brincar livremente, de experienciar a vida em sua plenitude sem a pressão de uma performance. O resultado é uma desconexão profunda com a própria essência, uma perda da autenticidade que pode ecoar por toda a vida adulta.

O impacto se estende, ainda, à própria capacidade de processar e integrar a experiência vivida. Como Thomas Ogden e Antonino Ferro, expandindo as ideias de Bion, nos ensinam, a mente precisa de uma “reverie” – uma capacidade de sonhar e metabolizar as experiências brutas, os “elementos beta” (sensações e emoções não pensadas) – transformando-os em “elementos alfa” que podem ser pensados, falados, narrados e simbolizados. Quando a vida de uma criança é uma sequência de poses forçadas, scripts pré-determinados e exposições não processadas, ela perde a capacidade de construir sua própria história interna, sua narrativa pessoal. Os traumas, as confusões, as angústias permanecem em seu estado bruto, “não sonhados”, resultando em uma profunda fragmentação psíquica. A falta de uma narrativa pessoal coesa deixa vazios e lacunas que podem ecoar por toda a vida adulta, manifestando-se em dificuldades de identidade, de relacionamento e de sentido.

E o que dizer do “Algoritmo P”? Ele não é apenas um código de programação. É, em sua essência, o reflexo e o amplificador de uma patologia coletiva que encontra no ambiente digital um terreno fértil para se manifestar. Ele potencializa o voyeurismo, distorce a percepção da infância, conecta predadores e vítimas, e perpetua um ciclo de invasão e exploração que viola o sagrado direito de toda criança à privacidade, à proteção e a uma infância genuína. É um espelho sombrio das sombras que habitam o inconsciente coletivo, revelando nossa capacidade de instrumentalizar o mais vulnerável em nome do lucro e do entretenimento.

O que o vídeo de Felca nos trouxe, e que a psicanálise nos ajuda a aprofundar, é um chamado urgente à responsabilidade. Não basta indignar-se diante de uma manchete ou de um vídeo viral; é preciso compreender a complexidade do que está acontecendo com a alma de nossas crianças. Precisamos de uma “reverie” coletiva como sociedade, um momento para parar, pensar e sentir o peso dessa realidade. Precisamos restabelecer o ambiente de “holding” não só nas famílias – através da educação e da conscientização sobre os perigos e as responsabilidades parentais no digital – mas também nas políticas públicas, nas empresas de tecnologia e, sobretudo, em nossa própria consciência sobre o uso e os perigos do mundo digital. A proteção da infância é um imperativo ético e um investimento no futuro da própria humanidade. Que a infância seja livre para sonhar, para brincar, para errar e para crescer, sem que sua alma seja vendida em um leilão de curtidas e engajamento.

 

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe