

Entre o desejo de viver e a força que destrói
De um lado, estão os impulsos do id, com toda a potência da vida e da agressividade; de outro, o superego, que pode se tornar um juiz severo e cruel. Quando esse superego assume feições sádicas, o sujeito passa a carregar dentro de si um carrasco interno, sempre pronto a punir.
Postado em 07/09/2025 12:32
Na minha experiência clínica, poucos sofrimentos se mostram tão desafiadores quanto aqueles em que a própria pessoa parece voltar-se contra si mesma. Freud, em Além do Princípio do Prazer (1920), já nos ensinava que nem tudo no psiquismo se orienta pela busca do prazer. Há em nós uma força silenciosa, a pulsão de morte, que pode assumir a forma de auto sabotagem, de sintomas que se repetem sem explicação ou até de atos mais radicais contra a própria vida.
O que observo no consultório é que, muitas vezes, o eu se encontra encurralado. De um lado, estão os impulsos do id, com toda a potência da vida e da agressividade; de outro, o superego, que pode se tornar um juiz severo e cruel. Quando esse superego assume feições sádicas, o sujeito passa a carregar dentro de si um carrasco interno, sempre pronto a punir.
Ferenczi, em sua teoria da “confusão de línguas” (1933), mostrou como traumas precoces podem ser incorporados pela criança e mais tarde reaparecer como ataques contra si mesmos. Winnicott, por sua vez, demonstrou que quando o ambiente falha em sustentar o bebê em sua vulnerabilidade, ele aprende a sobreviver com defesas que, no futuro, podem se cristalizar em formas de autodestruição. Já Melanie Klein descreveu como objetos internos persecutórios, quando não elaborados, transformam-se em vozes internas que atacam sem descanso. Vejo essas teorias se confirmarem cotidianamente na clínica.
Esses conflitos, entretanto, não surgem à luz da consciência. O inconsciente os mantém ativos, recobertos por mecanismos de defesa. Freud descreveu a negação como uma forma de admitir um conteúdo recalcado sem realmente aceitá-lo. Klein acrescentou que a projeção e a introjeção hostil reforçam os ataques internos. É nesse terreno obscuro que a análise precisa intervir.
Na transferência, esses movimentos autodestrutivos ganham corpo. Com frequência, o analisante repete na relação com o analista os mesmos padrões de ataque e autossabotagem que o aprisionam em sua vida. Freud já havia indicado que a transferência é o motor da análise. Winnicott foi além, mostrando que o setting pode funcionar como um espaço de holding, onde até mesmo as experiências mais primitivas encontram lugar para serem vividas e transformadas.
Meu objetivo, como psicanalista, não é “eliminar” a destrutividade — até porque Freud já nos mostrou que isso seria impossível —, mas dar-lhe forma, transformá-la em experiência simbolizável. Quando aquilo que só se expressava como ferida passa a ser pensado, o sujeito encontra novos caminhos para existir. Vejo, então, a energia antes voltada contra si mesma para encontrar destinos mais criativos e menos dolorosos.
A análise não promete abolir o conflito, mas tornar possível viver de outro modo. É nesse trabalho de escuta e elaboração que muitas vezes vejo o sofrimento se converter em vida, e a destrutividade, paradoxalmente, abrir espaço para a criação.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe